domingo, 18 de abril de 2010

Coisas que se contam # 4

COISAS DA VIDA

E dentro do apartamento dela havia o quadro. Na sala, o instante capturado. A mulher em preto e branco atravessa, sozinha, a faixa de pedestre com seu vestido esvoaçante. A imagem toma a parede. Ao redor da arte, o verde musgo, forte. No ambiente não há móveis. O sol entra satisfeitíssimo quando o querem por lá. Em maior intimidade, no quarto, havia livros de cinema, de pintores e uma pequena caixa com ilícito produto. Para se distrair... quando se achar que deva. Outras coisas também existiam, algo básico para o exercer de sua feminilidade.


Dona de si... corpo, alma e liberdade. Mulher suficiente para possuir outras mulheres. Ela olhava e tranqüilamente diria ao olhar presente do amante: “Me coma” - quando o desejo da carne gritava. E enlouquecia qualquer um dos seus homens quando comentava a noite de luxuria com suas outras três amigas livres, todas unidas no intuito do prazer comum. Quando suspirava, era como se comunicasse a todos que poderiam escutar sua respiração: “Eu sou a sinceridade do pecado.”


Terminava Direito na faculdade federal, possuía um conhecimento das leis e de como transgredi-las.


Leis do homem... leis de deus. Livremente residia só.


Em noites avulsas, gostava de sair. Não caçava, apenas acontecia e naturalmente vivia os instantes. Era então que eles poderiam aparecer. E foram delírios encontrados entre sorrisos e olhares. Na conversa houve o encontro. Depois da segunda banda, a boate deixava para ambos de ser interessante, resolveram aproveitar as possibilidades do resto da noite. Foram a casa. Passaram tranqüilamente, mesmo bêbados, pela sala e corredor até o quarto. Como se o gozo os conduzisse. E foi a foda. Algo compreensivelmente delirante, como toda primeira noite ao experimentar um corpo virgem do seu toque. A cama baixa, quebrada de atos antigos, fora remodelada para charmosamente nipônica situar-se no chão. Onde por algum tempo habitaria dois corpos exaustos.


Na manhã seguinte após o sono curto e profundo, um beijo na face, um até logo e o corpo cansado dela voltaria pra cama, a chave calmamente girada na porta ao sair do amante.


Após algumas horas, porque o domingo lhe permitia tempo de descanso, ao entrar em seu banheiro, um cheiro quase insuportável lhe impregnou o nariz. No vaso: o dejeto. Enorme, o maior que já vira. Descargas foram usadas, mas ele indiferentemente continuava lá a boiar. Lançou mão de baldes d´agua. Na força da água o asco do cheiro que suspirava do aparelho lhe provocou o vômito. Foi agora para a janela conseguir um ar mais tragável. E aí conseguiu ver no toldo do vizinho, abaixo ao seu, o caminho do vômito que jorrava dela, escorrendo na lona.


Voltou a cabeça para dentro. Era preciso ser mais incisiva agora. Por sua vida atribulada de estudos e trabalhos não teria, displicentemente, alguns utensílios domésticos que antes desse dia julgara desnecessários: desentupidor, luvas para lavar pratos. Afinal tinha uma lavadora de pratos e um aparelho digestivo de que nunca se preocupara.


Foi à cozinha em busca de “equipamentos”. Saco plástico em que poderia ser utilizado como luva. Volta ao banheiro com os mesmos amarrados, um em cada mão. Ao objetivo se lançou. Quebrou pacientemente o que deveria ser quebrado que logo após isso escorregariam suavemente pelo cano do aparelho até a fossa. Retornou à janela e com balde e um rodo, raspou o vômito do vizinho toldo.


Terminado tudo. Sensação de dever cumprido. Liga a televisão e se acomoda no sofá. Continuou o seu domingo. A vida tem dessas coisas.

NÃO CABER

a saudade não cabe em uma palavra
nem no quarto que se torna cada vez maior
tão pouco nas ruas estreitas de minha metrópole
a saudade se tornou maior que o suportável

AO MEU AMIGO EDELBERTO

e agora
José
a construção acabou
os pedreiros foram embora
José
e agora
como seus quartos estarão

ARBÓREO SER ( ou manifestação surrealista)

Estava no alto. Arboreamente protegido. Nadou por entre folhas. Mergulhando entre seu balançar de pernas, ficava a olhar o mundo de certa distância. Molestava as frutas de vez em quando, apenas quando tinha vontade. Seu olhar ficava em cinza, verde e azul. De onde estava esperava. Apenas esperava a oportunidade de descer.