terça-feira, 12 de outubro de 2010

Coisas que se contam # 5


FARPA NO DEDO



A comida era feita de qualquer forma, não se identificava quase nada do que lá ela misturava. “Ele come o que eu botar.” Arroz, feijão, macarrão e um ovo.

Pelas frestas olhava o barulho. Sua respiração forte era ouvida em prazer com ele mesmo, gostava de fazer isso: projetar através da porta o seu bufar e se escutar.

Amarrava um lenço na vasilha, trazia uma garrafa com água em suas visitas – um litro apenas da água do poço, na lata que era de óleo. Caminhava metodicamente à uma da tarde, sua procissão. “Devia não ter voltado... Estou que num me agüento. Ainda chegou sozinho... achou o caminho de volta.” O sol quente após o almoço. Prosseguia pelo baixio escutando os seus passos na terra seca.

Um penico de fezes ficava no canto da sala, uma lata grande de urina também em um outro local da casa. A barba estava enorme e não tomava mais banho, o calção de dias rasgando-se ficara em seu corpo, até não mais poder. Sem falar mais com ninguém, passava o dia a esmo dentro da casa e de seus perigos. O fogo era aceso de quando em vez, às vezes por motivo justo.

Ao passar pelas casas cumprimentava e por vezes tardava um pouco. Assunto nenhum, apenas um balançar de cabeça afirmativo o que lhe falavam. Afirmava muitas coisas que sequer ouvia. “Eu é que sei de mim. Dormir ao lado dele... tá pensando? Quem não acorda sou eu!” Distraía-a em sua caminhada o rastejar dos bichos, os procurava com olhos, muitas vezes nada achava.

A barriga martelava a hora próxima. O corpo se regulara com o tempo. Quando cansava da fresta, andava pelo corredor alterando o toque nas paredes, esquerda, direita, esquerda... Às vezes deitava ao chão e forçava o olhar no brilho do cimento, era tocado pelo raio que escapava para dentro da casa por um furo na telha. Ficava vendo a poeira dançando e ria.

“Já levaram duas vezes, vou pedir que levem de novo. Ainda tenho a corda... a mim ele não respeita mais, mas a corda ainda funciona.” Abria a cancela que em outros momentos era tão ativa, vigiada por cão. A casa mais viva. Colocava agora no batente o alimento e a água, batia na porta, por vezes até se achar percebida. “Ora minha cruz... vou ter que morrer também.”

Saiu só depois...

MENSAGEIRO DOS VENTOS

... o objeto que canta não existe mais
dos pedaços em cacos
se recolhe em minhas mãos e lembranças
a lisura da idéia passada
ao não atrito em entrelaçar o passado
não mais que cacos
o que antes iluminava...

(faíscas incandescendo o opaco cotidiano)

DOM DIVINO

poeta
também
tem
pecado

AÇUDE



O menino exigia que ele parasse. Não gostava mais. Apenas o açude, as águas, o escutavam. Demorou até encontrarem o outro, já inchado e azul. O tio surgiu para encontrá-lo. Até então o pequeno repetia silenciosamente, como um mantra... para, para, para... O pouco corpo foi colocado na pedra, ao lado o homem cansado, respirando forte. A brincadeira há muito tinha acabado.

domingo, 18 de abril de 2010

Coisas que se contam # 4

COISAS DA VIDA

E dentro do apartamento dela havia o quadro. Na sala, o instante capturado. A mulher em preto e branco atravessa, sozinha, a faixa de pedestre com seu vestido esvoaçante. A imagem toma a parede. Ao redor da arte, o verde musgo, forte. No ambiente não há móveis. O sol entra satisfeitíssimo quando o querem por lá. Em maior intimidade, no quarto, havia livros de cinema, de pintores e uma pequena caixa com ilícito produto. Para se distrair... quando se achar que deva. Outras coisas também existiam, algo básico para o exercer de sua feminilidade.


Dona de si... corpo, alma e liberdade. Mulher suficiente para possuir outras mulheres. Ela olhava e tranqüilamente diria ao olhar presente do amante: “Me coma” - quando o desejo da carne gritava. E enlouquecia qualquer um dos seus homens quando comentava a noite de luxuria com suas outras três amigas livres, todas unidas no intuito do prazer comum. Quando suspirava, era como se comunicasse a todos que poderiam escutar sua respiração: “Eu sou a sinceridade do pecado.”


Terminava Direito na faculdade federal, possuía um conhecimento das leis e de como transgredi-las.


Leis do homem... leis de deus. Livremente residia só.


Em noites avulsas, gostava de sair. Não caçava, apenas acontecia e naturalmente vivia os instantes. Era então que eles poderiam aparecer. E foram delírios encontrados entre sorrisos e olhares. Na conversa houve o encontro. Depois da segunda banda, a boate deixava para ambos de ser interessante, resolveram aproveitar as possibilidades do resto da noite. Foram a casa. Passaram tranqüilamente, mesmo bêbados, pela sala e corredor até o quarto. Como se o gozo os conduzisse. E foi a foda. Algo compreensivelmente delirante, como toda primeira noite ao experimentar um corpo virgem do seu toque. A cama baixa, quebrada de atos antigos, fora remodelada para charmosamente nipônica situar-se no chão. Onde por algum tempo habitaria dois corpos exaustos.


Na manhã seguinte após o sono curto e profundo, um beijo na face, um até logo e o corpo cansado dela voltaria pra cama, a chave calmamente girada na porta ao sair do amante.


Após algumas horas, porque o domingo lhe permitia tempo de descanso, ao entrar em seu banheiro, um cheiro quase insuportável lhe impregnou o nariz. No vaso: o dejeto. Enorme, o maior que já vira. Descargas foram usadas, mas ele indiferentemente continuava lá a boiar. Lançou mão de baldes d´agua. Na força da água o asco do cheiro que suspirava do aparelho lhe provocou o vômito. Foi agora para a janela conseguir um ar mais tragável. E aí conseguiu ver no toldo do vizinho, abaixo ao seu, o caminho do vômito que jorrava dela, escorrendo na lona.


Voltou a cabeça para dentro. Era preciso ser mais incisiva agora. Por sua vida atribulada de estudos e trabalhos não teria, displicentemente, alguns utensílios domésticos que antes desse dia julgara desnecessários: desentupidor, luvas para lavar pratos. Afinal tinha uma lavadora de pratos e um aparelho digestivo de que nunca se preocupara.


Foi à cozinha em busca de “equipamentos”. Saco plástico em que poderia ser utilizado como luva. Volta ao banheiro com os mesmos amarrados, um em cada mão. Ao objetivo se lançou. Quebrou pacientemente o que deveria ser quebrado que logo após isso escorregariam suavemente pelo cano do aparelho até a fossa. Retornou à janela e com balde e um rodo, raspou o vômito do vizinho toldo.


Terminado tudo. Sensação de dever cumprido. Liga a televisão e se acomoda no sofá. Continuou o seu domingo. A vida tem dessas coisas.

NÃO CABER

a saudade não cabe em uma palavra
nem no quarto que se torna cada vez maior
tão pouco nas ruas estreitas de minha metrópole
a saudade se tornou maior que o suportável

AO MEU AMIGO EDELBERTO

e agora
José
a construção acabou
os pedreiros foram embora
José
e agora
como seus quartos estarão

ARBÓREO SER ( ou manifestação surrealista)

Estava no alto. Arboreamente protegido. Nadou por entre folhas. Mergulhando entre seu balançar de pernas, ficava a olhar o mundo de certa distância. Molestava as frutas de vez em quando, apenas quando tinha vontade. Seu olhar ficava em cinza, verde e azul. De onde estava esperava. Apenas esperava a oportunidade de descer.